O Corpo Humano

É um milagre uma maldição

Amaris Tyynismaa tem apenas 14 anos

mas ela sabe disso melhor que qualquer um.

Duncan Murrell

O corpo humano é um milagre O corpo humano é uma maldição

Amaris Tyynismaa

O percurso era pantanoso nas partes mais baixas, mas o céu estava claro e o tempo de novembro, bem propício para correr rápido. E era exatamente isso o que Jordan van Druff estava fazendo. Musculoso, o estudante da oitava série havia aberto uma ampla vantagem sobre os melhores corredores de 13 e 14 anos do sul. Ele descia cuidadosamente o último morro de um percurso de cinco quilômetros, escolhendo o caminho entre pedras e raízes, até que chegou à parte mais baixa e se dirigiu ao fim, sob os gritos de fãs e técnicos. Ele estava totalmente no comando, mas, mesmo assim, parecia apreensivo.

Atrás dele, voando morro abaixo como se nada existisse, nem pedras nem raízes, surge uma figura de longos e rebeldes cabelos loiros. Essa corredora acelerava com os olhos pregados nas costas de Jordan como se ele fosse o jantar.

"É uma menina. Uma menina", disse um dos treinadores. As pessoas se aglomeravam na grade de contenção para poder vê-la.

O nome dela era Amaris Tyynismaa. Ela tinha 13 anos e era ágil, toda vestida de rosa-shocking e laranja. A cada passo que dava, ela parecia abocanhar grandes pedaços de chão e quanto mais ela corria, maiores e mais fáceis pareciam seus passos. O mais estranho é que ela sorria, embora corridas de longa distância sejam consideradas, acima de tudo, um exercício de agonia. Vários meninos que ela deixava para trás a aplaudiam.

Se o trajeto fosse 200 metros mais longo, Amaris poderia ter ganhado a corrida inteira. Quando ela cruzou a reta final, 12 segundos atrás de Jordan e solidamente na frente dos outros, ela olhou para o relógio: 3,1 milhas em 16:57. Foi uma das marcações mais rápidas dos Estados Unidos entre garotas de ensino médio no ano passado – exceto pelo fato de que Amaris ainda está no ensino fundamental. Ela só começou a correr competitivamente no ano anterior.

Quando ocorreu esta corrida - a Foot Locker South Regional, em Charlotte, no outono passado - Amaris já tinha participado de um campeonato nacional de ensino médio no Alabama com 80 segundos, o equivalente a ganhar um jogo de basquete com 100 pontos a mais. Em fevereiro, depois de registrar alguns outros recordes no estado do Alabama, ela foi nomeada uma das melhores corredoras em distância de corrida indoor, e a única estudante de ensino fundamental do grupo.

Seus treinadores acreditam que ela tem talento para ser uma campeã na Liga Universitária Americana (NCAA), talvez até ser uma atleta olímpica. Eles dizem isso com cautela, bem conscientes de que esta conversa sobre o futuro de uma corredora tão jovem é arriscada. Tornozelos e canelas quebram, a motivação diminui, o corpo muda. Esses são os desafios enfrentados por cada corredor que demonstra uma promessa inicial. Amaris, no entanto, tem outras lutas para enfrentar.

No dia anterior à corrida, em Charlotte, seu pai, Mike, piloto da Força Aérea, foi buscá-la como se ela fosse uma menininha, carregando-a por 17 andares porque ela estava apavorada demais para subir pelo elevador do hotel. Qualquer lugar fechado a paralisa de ansiedade e medo: seu rosto fica vermelho, seu coração acelera, todo o seu corpo esquenta. Na primeira vez que ela viu o elevador do hotel, ela decidiu subir pelas escadas e ficou exausta. Na segunda vez, seu pai não permitiu que ela ficasse esgotada antes da corrida. Enquanto subia, ele a segurava bem perto dele e ela contava piadas, tentando fazer com que seu coração desacelerasse.

Alguns meses depois, a mãe de Amaris, Kristen, explicou como alguém com tão grande talento pode ser também tão frágil. Kristen é perceptiva e protetora com os seus filhos e ela tem muitos motivos para pensar na luta travada entre o corpo e o cérebro de Amaris. "Quando ela corre acho que corre da sua doença", diz Kristen.

Quando Amaris tinha três anos, seus pais às vezes a encontravam deitada no chão, virada para cima e dura, com todos os músculos do seu corpo contraídos. Seus olhos ficavam bem abertos e focavam em um lado; seu rosto ficava vermelho de tanto prender a respiração. Então, após alguns minutos, ela se levantava e continuava brincando como se nada tivesse acontecido.

Outras vezes ela se mostrava excessivamente sensível a determinados tecidos e texturas em contato com sua pele. Quando colocava um casaco para sair de casa, ela caía no choro e dava chutes. O que aconteceu depois foram anos de consultas, exames e diferentes tipos de terapias. Sempre que os médicos pareciam próximos de uma resposta, as exigências da vida militar da família faziam com que eles se mudassem e começassem novamente todo o processo. Finalmente, depois de um ano de cuidadosa observação, um médico de Walter Reed a diagnosticou com a Síndrome de Tourette, ou ST.

Apesar da popular e cultural representação da ST como sendo uma doença de palavras obscenas, Amaris, assim como 90% das pessoas com a síndrome, nunca falou um palavrão ou gritou coisas ofensivas incontrolavelmente. ("Omigosh" – AimeuDeus, em português - é o mais próximo que ela chegou de um palavrão). Em vez disso, ela sente uma vontade irresistível de movimentar partes do seu corpo de maneiras bem específicas e às vezes faz pequenos ruídos com a garganta - um tique, como é chamado, embora a palavra não descreva a dimensão do problema. Há alguns anos, os tiques eram tão intensos que a puxavam para fora da mesa. Ela gastava tanta energia lutando contra esses tiques que não conseguia se concentrar na escola; ela sabia que as outras crianças pensavam que ela tinha um problema. "É como se você tivesse uma pessoa má atrás de você e ela mandasse você fazer certas coisas e você tivesse que brigar com isso", diz ela.

Há crianças que são Jovens Embaixadores para a Associação da Síndrome de Tourette e outras que escrevem na newsletter chamada That Darn Tic (ou Aquele Maldito Tique em tradução livre). Amaris não é uma delas. Ela odeia os tiques e ela particularmente detesta a ideia de que as pessoas tenham que aceitá-los. Ela vê isso como uma agressão a ela.

Os distúrbios do sono são comuns entre pessoas com ST e os terrores noturnos de Amaris começaram no jardim de infância e continuaram por muitos anos. Eles eram infalíveis. Todas as noites, 45 minutos após adormecer, seus pais a ouviam pular da cama. Ela corria pela casa subindo e descendo as escadas e gritando. Ela via aviões voando, descendo, caindo. Alguma vezes, ela estava dentro deles e em outras eles estavam sobrevoando em volta dela. Ela se sentia sozinha. E ela sentia uma dor física bem real, uma queimação inextinguível em seu polegar. Depois de um tempo, ela se acalmava, voltava para a cama e, de manhã, ela mal se lembrava do que tinha ocorrido.

"É muito triste ver um filho com tanta dor", diz Kristen, “especialmente quando isso não tem nada a ver com quem ela é, uma menina confiante e incrível. Mas ela tem essa outra parte". E essa parte a obriga a se esconder. Na quarta série Amaris começou a carregar uma pedrinha para esfregar e um saquinho com ervas de cheiro doce para espremer quando sentia que os seus tiques começavam. Isso ajudava um pouco. Assim como outras crianças com ST, ela também desenvolveu técnicas secretas para parecer "normal".

"Eu costumava ter vontade de abrir minhas pernas como se fosse um alongamento", diz Amaris, “e eu me lembro que uma vez eu estava na linha de partida e precisava fazer isso, eu tinha que fazer naquele momento e então eu fingi que estava me alongando e fiz uns polichinelos também. Pois é, ninguém nem me disse nada."

Ela mal podia esperar pelos momentos em que estava sozinha no corredor da escola, ou na sala de aula, quando ninguém estava olhando. Ela podia então esticar seus quadris uma e outra vez ou a boca tanto quando quisesse, sacudindo o pescoço para o lado com tanta força que lhe causava ao mesmo tempo dor e alívio. Na maioria das vezes, porém, ela tinha que se comportar da melhor forma possível e guardar seus tiques para mais tarde. No fim do dia escolar, ela estava acabada.

"Eu entrava no carro da minha mãe e estava tão exausta e chateada, e acho que chateada comigo mesma também, que eu só gritava", diz Amaris. "Eu ficava muito mal. Eu fazia todos os tiques. Eu chorava. Ai meu Deus, era horrível. Lembro-me de que eu estava animada para ver minha mãe, e então eu dizia Mãeeeeee e tinha um ataque."

"'Yay, é a Mamãe! Rowwwwr!'"diz Mike. É uma prática comum na família Tyynismaa rir das partes mais terríveis de suas histórias. Todos eles fazem isso.

"Mas eu não queria machucá-la. Eu só estava muito abalada. Eu a amava, mas eu tinha que colocar tudo para fora, e, infelizmente... Eu sinto muito, mamãe."

"Eu te amo", dizia Kristen.

"Eu também te amo, mãe."

As coisas não começaram a mudar para Amaris até a terceira série, quando a família se mudou para a Inglaterra, por causa de um cargo na base da Força Aérea Britânica, em Lakenheath. Na escola fundamental de Feltwell, ela começou da mesma forma de sempre – era quieta, murmurava, escondia seus tiques da melhor maneira possível.

Um dia Kristen sugeriu que ela se juntasse à equipe de futebol. Amaris descobriu que ela gostava de jogar e era boa nisso, mas, mais do que isso, ela descobriu algo crucial sobre sua ST: que poderia esquecê-la por um tempo. Seus pais notaram que ela tinha tiques quando jogava na defesa ou se tivesse tempo para ficar pelo campo sem fazer nada. Mas quando o treinador a colocava no meio-campo, uma posição que exige constante corrida, ela mal tinha tiques. Estar em movimento anulava as compulsões incontroláveis do seu corpo.

A sensação de controle era tão estranha, tão revigorante, que cada vez que ela ia para a prática de futebol ela não queria que acabasse mais. "Eu sabia que uma vez que isso acontecesse, talvez mais tarde naquela noite eu teria o desejo de ter um tique novamente. Lembro-me que eu dizia, 'Treinador, treinador, por favor, podemos simplesmente continuar por mais cinco minutos?’" dizia ela. "Eu sentia uma sensação de liberdade no campo, como se eu tivesse me livrado dos tiques."

Alguns atletas com ST atribuem seus poderes quase mágicos à sua condição. Tim Howard, goleiro do time americano de futebol da Copa do Mundo no ano passado disse que a ST tem lhe dado visão e reflexos que outros jogadores simplesmente não têm. O famoso médico Oliver Sacks escreveu certa vez sobre um jogador de pingue-pongue, cuja anormal rapidez e habilidade de rebater jogadas impossíveis, ele acreditava, estavam associadas à ST. Uma razão é que as pessoas com Síndrome de Tourette também tendem a ter Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) como Amaris. Elas precisam repetir comportamentos – seja para evitar que as bolas cheguem na rede ou correndo improváveis longas distâncias - até que tudo saia certo. "Eu não estou dizendo que isso é bom," disse Sacks a um repórter no ano passado, "mas se você tem a Síndrome de Tourette, você tem vantagens. "Uma nova pesquisa da Universidade de Nottingham mostra que o cérebro de pacientes com ST são fisicamente diferentes de todas as outras pessoas e eles podem controlar melhor seus corpos, que são transformados por anos operando sob uma resistência muito maior que o normal.

Neurologistas da Associação da Síndrome de Tourette não estão prontos ainda para apoiar a conexão entre ST e uma capacidade atlética superior. Eles se sentem mais confortáveis em afirmar que as pessoas com ST, muitas vezes, veem seus sintomas desaparecerem quando realizam esportes ou se envolvem com atividades que tiram a sua atenção do tique.

O futebol acalmou o barulho na cabeça de Amaris. Depois de começar a jogar ela passou a ter menos tiques fora do campo. Ela melhorou na escola. Ela falava mais. Na verdade ela falava muito, como agora. No seu último jogo, na Inglaterra, ela marcou três gols e as outras crianças a levantaram acima dos ombros, carregando-a pelo campo. Ela teria tido um grande problema com isso poucos meses antes – por causa dos germes - mas ela adorou. E daí sua família mudou-se para o Alabama.

Seus tiques intensificaram-se com o estresse e a ansiedade de ser transferida para uma nova base, uma nova casa, uma escola sem amigos. Mais do que em qualquer outro momento da sua vida, seus tiques a deixavam exausta. Mas a experiência na Inglaterra lhe ensinou algo. Ela decidiu juntar-se a dois times de futebol diferentes e a uma equipe de natação.

Em pouco tempo, Mike e Kristen começaram a ouvir histórias de proezas atléticas que pareciam impossíveis. Particularmente, os dois foram informados de que a sua garotinha de sexta série tinha corrido uma milha na escola em bem menos de seis minutos.

"Eu gosto daquele garoto chamado Isaac", disse ela. "Ele é legal. Eu não o conheci, mas... ele é muito alto. Mesmo."

"Eu pensei que poderia haver algo errado com a pista de corrida", disse Kristen. Mike se negou a acreditar. Amaris ficou indignada. Havia uma pista de atletismo na base e assim, em um dia quente do Alabama eles a levaram para lá e a deixaram correr. A primeira volta terminou em um bom tempo e eles ficaram impressionados, mas não convencidos. "Eu não tinha certeza se ela poderia manter a marca", diz Mike. Mas, logo depois, ela começou a ir mais rápido e mais rápido e terminou em 5:36.

"Foi aí que percebemos que ela era muito boa", disse Mike.

O momento não poderia ter sido melhor. O futebol estava começando a ser demais para Amaris. Na sua última equipe ela era, de longe, a mais nova e entrava em pânico sobre o que as outras meninas diriam de sua participação, tanto que ela perdeu o prazer e boa parte do benefício que trazia ao praticar o esporte. E nadar era algo muito solitário. A conexão existente nos times é mais difícil quando você está debaixo d'água o tempo todo.

Correr, por outro lado, parecia ser a coisa certa para ela. "É o meu favorito", ela gosta de afirmar. Ao contrário da maioria de nós, que não leva jeito para a corrida, ela não parece estar tentando ser mais rápida. Você tem que prestar atenção no cenário atrás dela para apreciar como ela come distâncias. Ela é equilibrada em todos os momentos, cada lado dela colocando exatamente a mesma quantidade de esforço em intervalos precisamente alternados. Ela parece estar mais no ar do que no chão. As fotografias de Amaris nas corridas tornaram-se involuntariamente divertidas por sua mesmice: aqui está a criança rápida e aqui estão todos os espectadores e oficiais olhando para ela, boquiabertos.

Ela está até começando a apreciar a brutalidade do esporte, como a dor no corpo e os pulmões queimando, que acabam por desaparecer quando ela está elétrica, flutuando, consciente da dor e, simultaneamente, superior a isso. No mês passado ela me contou que recentemente teve uma prática reveladora. "Foi um treino muito duro", disse ela, "e no fim tivemos de fazer dois intervalos de 400 metros. Eu estava correndo e estava feliz. Eu não sei por que, mas foi muito fácil. E enquanto eu corria eu gritava ‘eu me sinto abençoada!’. Eu não sei, eu só... você não sente dor, você apenas está lá pensando em tudo e é muito difícil explicar."

Falar assim, causa simultaneamente deleite e terror em John Terino, seu treinador da escola Montgomery Catholic. Amaris é a corredora mais talentosa que ele já teve e ele gasta mais tempo que o normal refletindo sobre o futuro dela. No outono ele quer usar alguns meninos do time para entrar no treinamento dela em diferentes partes da corrida, uma vez que nenhum deles consegue acompanhá-la do início ao fim. Enquanto a prepara para um possível campeonato nacional no ano que vem, ele estuda corridas famosas para sua estratégia.

Ele também sabe que a história de jovens prodígios na corrida não é necessariamente feliz. Ele vê o quanto Amaris exige de si mesma, o quanto ela é perfeccionista e pensa: será que isso é realmente sustentável? O que vai acontecer com ela se não for? "Meu maior medo, uma vez que percebi o quão realmente boa ela é", disse ele, "é que eu não queria ser o cara que acaba com ela."

Amaris acha
que venceu a
Síndrome de Tourette.
Mas o cérebro
não
muda
milagrosamente.

Amaris nunca está sozinha nos encontros esportivos. Ela está sempre perto de pelo menos um dos membros da sua equipe. Depois de uma corrida ela coloca um moletom e fica com eles, quicando ali em volta, quase não os deixando partir até que eles vão para a pista fazer o aquecimento. Amaris tem amigos, é claro, mas ela nunca se aproxima muito de um grande grupo de pessoas, tanto de meninas quanto de meninos. Ela os chama de família e eles a tratam da mesma forma que qualquer outra pessoa.

Mas ela é diferente. Ela é uma das melhores jovens corredoras do país, o que significa que cada vez mais ela está sendo analisada e vista com admiração e espanto. Há alguns meses ela recebeu uma carta das campeãs de 2013 da Liga Universitária Americana de atletismo ao ar livre, da Universidade de Kansas. As crianças da escola a felicitam com “high fives” nos corredores, crianças que ela nem conhece. Nesses encontros, as meninas a encaram e cochicham alto no banheiro.

Às vezes, esse escrutínio fica pessoal. O mundo da corrida é um dos poucos em que é permitido aos adultos discutir, pública e clinicamente, os corpos das crianças. Estranhos especulam sobre o comprimento dos ossos, a musculatura dos abdominais e glúteos, a disposição dos quadris e dos seios. O corpo de Amaris tornou-se uma conversa comum, em corridas e fóruns de corrida online. Isso a assustava no início. "Lol" (abreviação de "Laughing Out Loud" - ou rindo alto, em português) escreveu um comentarista sobre Amaris em um quadro de mensagens. "Ela é pequena e compacta, quando ela chegar à puberdade suas marcas serão incrivelmente menores, já vi isso acontecer muitas vezes."

Em uma corrida cross-country, a qual ela ganhou por dois minutos, um treinador comentou que alguém deveria levar um sanduíche para ela. Mike me disse que nunca desejou tanto dar um soco em alguém. Ele respondeu que sua filha era naturalmente magra, e já tinha atingindo seu limite de crescimento e, embora isso não fosse da conta do treinador, a Síndrome de Tourette tinha forçado Amaris a usar todas as suas calorias extras.

Este tipo de atenção seria desconcertante para qualquer adolescente. Mas vários estudos têm mostrado que quando as pessoas com ST se sentem ansiosas, animadas, estressadas ou sozinhas - muitas das emoções que geralmente acompanham a fama e as competições de elite - seus tiques pioram. Os novos tiques, por sua vez, aumentam todos aqueles sentimentos de deslocamento e o ciclo recomeça.

A resposta de Amaris é se misturar tanto quanto possível. Mais do que qualquer outra coisa, ela tem medo de ser vista como estranha ou diferente. Ela desenvolveu um leve sotaque do Alabama do Norte, nada demais, só um pouco. Em uma assembleia, ela educadamente repreendeu o diretor de sua escola por anunciar só as suas realizações atléticas e não as de seus colegas. Ela gasta bastante tempo assistindo tutoriais de maquiagem na web e tem um visível interesse afetivo por meninos.

Em uma das corridas, as vaias recaíram fortemente sobre um garoto da Montgomery Catholic, que não é um colega, mas é alto, grande e um corredor muito rápido. Para protegê-lo nós vamos chamá-lo de Isaac.

"Nossa, olha Amaris! Olha, lá está ele, ai meu Deus", deixou escapar uma de suas colegas de equipe.

"Vaiiiii Isaac!", gritou Amaris.

"Eu gosto desse Isaac aí", disse, testando seu pai. "Ele é legal. Eu ainda não o conheci, mas..."

"Ele parece legal?"

"É. Ele é bem alto."

Mais tarde, ela e seu pai o assistiram correr em outro evento.

Aparentemente, o ano de Amaris está sendo muito bom. Ela não tem tido tiques visíveis por meses, e ela acha que venceu a Síndrome de Tourette. ("Não diga que eu comecei a melhorar", diz ela. "Diga que estou completamente curada porque eu estou.") Mas o cérebro não muda milagrosamente. A arquitetura da ST ainda está lá. Em uma de nossas conversas o pai dela mencionou seu tique no pescoço e a voz de Amaris elevou-se. "Oh não, não, não." Mike imediatamente se desculpou. Amaris lidou com isso, mas ela não quer que essas memórias façam parte da identidade que ela está construindo para si mesma.

Antes de Amaris descobrir as corridas, controlar seu corpo era sua maior luta. Agora, os desafios tendem a ser interiores. Como Kristen diz, as coisas que eram físicas agora são mentais.

"Seu último tique foi no final do ano passado, mas ela age como se tivesse sido há muito tempo", continua Kristen. "Ela está em um período de declínio, e agora o TOC veio à tona e tomou conta."

É por isso que ela anda até o pescoço com várias garrafas de água para, se precisar, ouvir o barulhinho na hora que quebra o lacre. Ela ainda lava as mãos até que elas se partam, embora não tão frequentemente como costumava. Depois de terminar o livro "Night", de Elie Wiesel, ela ficou obcecada com o horror do Holocausto e não consegue parar de falar sobre isso há semanas. Às vezes, diz Kristen, as coisas a consomem.

A maior preocupação agora é com a perspectiva de mudança. A família de Amaris está morando em Montgomery desde que ela estava na quinta série, um tempo longo para ela, que continua pedindo ao seu pai que se aposente do serviço militar. Ela não faz isso de uma maneira malcriada, mas da maneira acidental que as pessoas fazem quando não conseguem parar de falar e pensar no assunto. Afinal de contas, Mike esteve na guerra por quase um terço de sua vida. "É por isso que às vezes Amaris fica tão cansada", diz Kristen. A ideia de começar tudo de novo, em um lugar novo, uma escola nova, com pessoas novas - "é um gatilho".

Quando perguntei a Amaris como ela lida com a pressão em particular, com as expectativas de fixar-se em algum outro lugar e sobre as corridas, ela se mostrou tipicamente otimista. "Os corpos de algumas pessoas não mudam tanto assim, mas os de outras, sim. É o que Deus quer que aconteça com as pessoas", diz ela. "Então, quem sabe? As coisas acontecem." Seus pais também não estão preocupados onde vai parar sua carreira de atleta. Eles se preocupam com as demandas já existentes por ela ter se tornado uma das melhores corredoras do país e que isso fique fora de controle, e que, apesar de todos os ganhos nas corridas, o processo a sobrecarregue.

Nesse meio tempo, Amaris lê citações inspiradoras de um livro sobre a felicidade que sua mãe lhe deu e figurinhas de meninas que sorriem, apoiadas na sua perna, na aula. Ela faz o melhor que pode para tolerar a grosseria geral dos meninos de sua equipe – os catarros e cuspes; o dia em que eles pegaram lama e jogaram nela, dizendo que era esterco de vaca. "Ela se apavorou", disse Winston Wright, filho do seu treinador de atletismo e um corredor bem realizado. "Mas também era como se ela fosse uma de nós."

Quando a arma disparou, Amaris saltou. Foi a primeira corrida ao ar livre da temporada e ela estava correndo os 1.600 metros contra um grupo de meninas que incluía Kaitlin York, uma poderosa e compacta sênior da American Christian Academy e uma das únicas pessoas no estado que podem correr tanto quanto ela. Ela estava esperando por esta corrida desde que conseguiu quebrar a marca de cinco minutos nos 1.600, algumas semanas antes. Isso a estava irritando.

Antes da corrida ela me disse que tinha pegado um resfriado e que suas canelas estavam machucadas e esta era uma ótima notícia. Na semana anterior, ela se sentia perfeitamente saudável e, portanto, completamente sem rumo. "Eu esqueci como era correr", disse. "Eu estou tão acostumada a sentir um pouco de dor que, quando ela não está lá, eu não me sinto bem."

Nas duas primeiras voltas, Kaitlin alcançou Amaris quase que passo a passo. Ninguém mais chegou perto, mas Kaitlin parecia estar tensa. Suas mãos estavam apertadas; as de Amaris estavam soltas, abertas.

No início da terceira volta, o treinador de Amaris pediu que ela sorrisse, e ela fez isso. "Agora me ganhe espaço", ele gritou, e ela fez isso.

Mas antes que ela se afastasse demais, Amaris disse: "Bom trabalho, Kaitlin" alto o suficiente para a outra ouvir. Kaitlin não disse nada de volta.

"Eu fiquei um pouco chateada com isso", Amaris me disse mais tarde.

"Amaris, você sabe o que é se gabar?"

"Sim! Mas não! Eu estava feliz por ela."

"A maioria das pessoas não felicita umas às outras durante as corridas", eu disse.

"Era bom correr com alguém", disse ela de volta, mais tranquila e um pouco magoada.

A última volta foi uma maravilha. Kaitlin ficou para trás nove segundos, e o resto do campo se arrastou ainda mais para longe, até que da maioria dos pontos de observação ficou impossível seguir Amaris e todos os outros ao mesmo tempo. Ela estava sozinha novamente. Qualquer sinal de esforço havia diminuído de seu rosto. Ela apenas estava em seu próprio mundo. O treinador Terino chama essa expressão de "a felicidade de cruzar a terra sob seu próprio poder e controle”. Ela terminou em 4:59.50.

Ao cruzar a linha de chegada Amaris soltou um som estridente. Não era um tique, algo melhor, embora estranho: "Eba!" Apenas uma pequena explosão, a cabeça arremessada para trás. Ela pensou que estava gritando, mas não saiu dessa forma.

De volta para casa, na minivan, Amaris contou a Mike e a mim como ela odiava fazer compras de coisas que não fossem relacionadas à corrida. Mas ao passarmos por uma loja de departamentos ela nos perguntou se poderia dar uma olhada.

Lá dentro ela foi até a seção de roupas femininas, no início bem rapidamente. Ela tocou shorts, vestidos, tops e saias antes de deixá-los cair e continuar. "Não há nada que eu odeie mais do que compras", Mike me disse, embora ele parecesse feliz em ver sua filha entre os cabides. Ela diminuiu a velocidade e começou a considerar a roupa na frente dela, itens claramente para mulheres muito mais velhas. Ela se fixou em um top de malha verde floresta com uma cauda bem longa com furos do tamanho de uma moedinha em um padrão comum.

"Esta aqui é tão estranha, eu curto. Será que eu teria que usar uma regata ou camisa por baixo?"

"Sim, você teria", disse o pai dela. "Com certeza."

"OK", disse ela, rindo.

Mike aponta para uma blusa com uma bijuteria de crânio.

"E esta aqui?", perguntou.

"Não", disse ela. "Aff." Um vestido com a Dorothy do Mágico de Oz recebe um sinal de não. Também vários abrigos, algumas saias muito curtas e blusas mais apropriadas para uma vendedora de imóveis.

Ela voltava sempre para o top cheio de buracos. "Eu realmente gostaria deste aqui, pai. Você não acha esquisito?"

"Sim."

Ela ergueu a peça, pensando. Parecia uma performance, como se ela estivesse mais interessada em provar a ideia de algo do que uma peça de roupa de verdade. Ela pressionou a peça contra seu corpo.

"É tão estranha", disse ela, finalmente. "É tão eu."

Credits

Duncan Murrell é editor na Harper's Magazine, The Oxford American, e The Normal School. Ele mora em Pittsboro, na Carolina do Norte.
Maciek Jasik é um fotógrafo que mora no Brooklyn. O trabalho dele tem sido visto em New York, Variety, Bullet, Wired, entre outras.
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